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Ricardo Cavallini

Beleza não é tudo. Faz sentido o carro da Tesla ser feio (e fazer sucesso)

UOL Tecnologia

28/11/2019 04h00

Divulgação

Elon Musk divulgou o novo carro de sua empresa Tesla, uma picape. E não dá para dizer de outra forma, o carro é feio. Ponto.

Uma das explicações está no material. Por usar o mesmo aço que foi desenvolvido para os foguetes de outra empresa de Musk, a Space X, o material é tão resistente que os moldes quebravam ao tentar fazer formatos arredondados.

Remete muito a um termo criado pelo arquiteto Louis Sullivan em 1800 e bolinha: "forms follow function". A forma segue a função. Conceito que foi muito usado na primeira década de internet, bem antes de surgir termos como design de usabilidade e de experiência.

Sim, o carro é feio e esquisito. Obviamente os memes surgiram aos montes. Alguns deles comparando com o Gurgel de décadas atrás. A picape Gurgel tinha motor de kombi, linhas retas e era feito de fibra de vidro. A mais tradicional versão do que eu chamaria de "forms follow low budget", ou seja, a forma segue o orçamento.

Os memes são maravilhosos, mas não passam disso. Zueira never ends. Não podemos levar a sério. O problema é quando começam a pipocar os posts sérios de coachs no Linkedin e até de especialistas automotivos comparando os dois carros.

Gurgel pode ter sido, sim, inovador, empreendedor, pioneiro. Gurgel fez um carro elétrico 34 anos antes de Musk, mas um século antes disso, era comum ver carros elétricos andando nas ruas de Nova York. No osso, mesmo com todos os méritos de seu fundador, o carro Gurgel era apenas feio. Mas, ainda que alguns acreditem que Gurgel era mais inovador que Musk, o entendimento superficial de "se parece igual, é igual" beira ao ridículo.

E pior, coloca o design como a inovação do produto, justamente o "maior defeito" do carro. Digo defeito do carro, não da empresa, pois o design é uma prova de ousadia. E quem gosta de inovação admira demais isso. Principalmente no caso de Elon Musk, que só chegou onde chegou por ter apostado todas as fichas, várias vezes em alto risco.

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O carro vendeu muito, incompreensível para muitos. Mas precisamos olhar além da superfície. Como pode ter sido um sucesso?

Peter Drucker dizia que "o que um cliente compra raramente é o que uma empresa pensa estar vendendo". Ilustro este texto com uma historinha. Um mês antes da Disney lançar o filme "Big Hero 6" (no Brasil, "Operação Big Hero"), seu personagem principal Baymax já podia ser impresso em 3D por pessoas no mundo todo.

A iniciativa não partiu da Disney, era pura pirataria, o que daria uma reflexão em si, mas o assunto hoje é outro. Foram dezenas de milhares de downloads. E um monte de crianças pelo mundo felizes com o boneco – presenciei alguns casos.

O que é interessante neste caso é que estas impressoras 3D não industriais não têm a mesma qualidade de acabamento que produtos produzidos em larga escala, como os bonecos que compramos em lojas de brinquedo. Além disso, o modelo em si não tinha partes móveis. Os braços, pernas e cabeça eram fixos.

O que nos remete a mesma dúvida. Por que fez sucesso?

Existem algumas explicações possíveis. Primeiro: era um personagem bem interessante. Muitos queriam um boneco e o impresso 3D era a única opção. Segundo: por não estar à venda, era entendido como algo exclusivo, que poucas crianças tinham. Isso em si já é um atrativo. Terceiro: foi feito em uma impressora 3D. Se isso ainda é legal hoje, imagina em 2014.

A picape da Tesla vendeu 175 mil unidades nas primeiras 24 horas. Representa 8 bilhões em vendas de um produto que só será entregue em 2022, isso se a empresa não atrasar, algo bem comum em seu histórico. Daria para brincar e dizer que este é o financiamento coletivo mais bem-sucedido da história da humanidade. Ainda que 20% peça o depósito de volta (como aconteceu com outro modelo da Tesla que atrasou muito para ser lançado), é uma ótima garantia de vendas.

Estas pessoas não estão comprando um carro feio. Algumas estão comprando o amor pela tecnologia, em um carro que é mais parecido com um iPhone do que um carro tradicional. Um carro com o melhor sistema autônomo do mercado. Outras estão comprando o amor por inovação, em um carro cujo material foi desenvolvido para ser usado nos foguetes. Algumas estão comprando um propósito, o de investir na energia concorrente a combustão representado por um carro elétrico.

E parte das pessoas está comprando a possibilidade de vivenciar o futuro. Neste caso, nenhum formato é mais apropriado para isso. Muitas das nossas lembranças nostálgicas de filmes, desenhos e quadrinhos que falavam do futuro tinham exatamente esse mesmo design. O próprio nome e o logo deixam isso bem claro, nada mais cyberpunk do que Cybertruck escrito com esta fonte.

Quando o iPhone foi lançado, os críticos compararam com o Nokia N95. Nas descrições da caixa, o telefone da Apple era de longe o pior produto. Vocês sabem o final da história. Todo sucesso não compreendido é taxado de marketing. Daqui a pouco vão começar a falar que o Elon Musk tem campo de distorção da realidade igual ao Steve Jobs.

Sobre o Autor

Ricardo Cavallini é jurado do programa Batalha Makers Brasil, fundador da plataforma Makers e criador do RUTE, o kit educacional eletrônico mais acessível do mundo. Já escreveu seis livros sobre tecnologia, negócios e comunicação, foi apontado como uma das mentes mais inovadoras do setor no Brasil e recebeu dezenas de prêmios internacionais. Além de ter fundado a primeira agência digital do país, foi diretor de empresas como F/Nazca Saatchi & Saatchi, Euro RSCG 4D, W/Brasil e Organic inc. Na WMcCann, era vice-presidente de convergência.

Sobre o Blog

No blog, vai trazer dicas, debates e os vídeos que faz para quem curte o universo maker --sempre com uma linguagem fácil, para quem ainda não é expert.